Elisângela Lessa

Patrícia Silva

Phelipe Reis

Há um século, o mundo vivia impactos provocados pela Primeira Guerra Mundial, considerada por Erick Hobsbawm como o marco final do século XIX e início do século XX. A guerra acabou em 1918 e, nesse mesmo ano, o planeta vivenciou a luta contra um inimigo mortal, causador da gripe espanhola. Em 2020, segundo a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, a pandemia provocada pelo novo coronavírus passou a representar um marco de ruptura entre o fim do século XX e início do século XXI.

Os meios de comunicação no século passado, em relação aos eventos supracitados, e, de forma específica à gripe espanhola, tiveram pouca expressividade no combate à epidemia. Um século depois, o planeta é surpreendido pelo SARS-CoV-2, que causa a covid-19, e dessa vez os meios de comunicação investem alto na cobertura. Apesar disso, algumas autoridades de Estado pareciam então alheias à realidade, tendendo a priorizar o fator econômico em detrimento às vidas humanas.

Por outro lado, respondendo à seriedade do momento, a boa notícia veio de muitas organizações civis, não governamentais ou institucionais, que buscaram formas de participar do enfrentamento ao vírus. Foram agrupamentos que moldaram redes de solidariedade em razão da preservação da vida, procurando tecer retalhos da história. No cenário de 2020/21 e 22, caridade e empatia tornaram-se elos para integrantes de tais conjunturas.

No município de Parintins, Estado do Amazonas, a Primeira Igreja Batista (PIB) insere-se nesse contexto da contribuição. O fundador, Eduardo Lessa, já direcionava em décadas passadas atividades a causas humanitárias na cidade. Na pandemia, pastores progressistas assumiram a mesma caminhada, ultrapassando fronteiras municipais. Elmer Lessa, líder da entidade, foi contrário à reabertura dos templos batistas no município, mesmo que a Assembleia Legislativa do Amazonas tivesse permitido por decreto as aglomerações, na esteira do que o ex-presidente Bolsonaro pregava. “Fechamos as portas do prédio. Mas a igreja, que somos nós, continua viva e ativa para servir a comunidade”, afirmou, explicando o engajamento.

A igreja procurou ajudar com insumos diante da crise sanitária. De forma independente ou em parceria, aconteceram compras, confecções e distribuição de EPIs, além de itens de limpeza. Foram máscaras, protetores faciais, capotes impermeáveis, calças, capuzes, pró-pés, sabonetes, água sanitária, água mineral, cápsula de hood e protectmax-odonto, dentre outros.

Outra iniciativa se deu na distribuição de cestas básicas para famílias necessitadas, dentre elas indígenas das etnias Sateré-Mawé e Hixkaryana, além da cessão de um avião para apoio na região da Amazônia Central. É interessante destacar que a aeronave, da organização “Missão do Céu”, realizava até duas viagens por semana a Parintins e Maués, municípios que servem como polos para Nhamundá, Barreirinha e Boa Vista — todos a leste do Amazonas. O avião levava ainda a Manaus, capital do Estado, materiais coletados para exame de covid. O primeiro voo aconteceu dia 21 de abril de 2020.

Na primeira fase do espalhamento, em 2020, foram produzidas 1.000 máscaras de TNT por mulheres da igreja e 250 máscaras de tecido. Houve a arrecadação e a doação de 1.745 litros de água sanitária e 1.000 garrafinhas de água mineral, além de 50 metros de tecido para confecção de máscaras, 10 litros de álcool em gel, 3.000 máscaras N95, 23 capas impermeáveis de chuva para motoqueiro, 87 capas de chuva comum, 12 viseiras de acrílico, 4 cápsulas de hood, 2 protectmax-odonto, 18 calças e capotes impermeáveis.

Nessa fase 1, o material beneficiou indígenas Sateré-Mawé e Hixkaryana, o Hospital Padre Colombo, o Hospital Jofre Cohen, a Secretaria Especial de Saúde Indígena, as Unidades Básicas de Saúde, o Centro Especializado de Odontologia, a Secretaria Municipal de Assistência Social, Trabalho e Habitação, a Associação de Mototaxistas, o Centro de Atenção Psicossocial Adolfo Lourido (Caps) e o presídio, além de Bombeiros, PMs e Central de Resgate.

Na segunda fase do espalhamento, a entidade contribuiu no financiamento dos seguintes materiais de proteção: 3.096 máscaras N95, 100 protetores faciais de acrílico, 200 capotes impermeáveis, 302 capotes de TNT espessos, 200 capotes de TNT fino, 69 calças e capotes imper­meáveis, 131 calças e capotes de TNT espesso, 62 pro-pés, 200 capuzes, 87 capas de chuva, 70 protetores de acetato/EVEA e 15 cápsulas e 4 cápsulas de hood. As doações foram direcionadas aos mesmos atores e agentes sociais.

O impacto da PIB pode ser mensurado em depoimentos de profissionais da área da saúde e segurança. Narrativas coletadas têm intuito de exemplificar algumas opiniões.

Apesar de fisicamente isolados naquele momento, pudemos estar muito unidos, ajudando uns aos outros de diversas maneiras: fortalecendo a fé, tranquilizando, consolando e amparando os que necessitam, em dias de medo, incertezas e dificuldades (Alberto Ferreira de Figueiredo Filho, médico urologista e cirurgião geral. Gerente técnico do Hospital Padre Colombo, membro do Comitê de Enfrentamento à Pandemia e plantonista do Time de Resposta Rápida de Atendimento à covid-19).

Entendo que a Igreja esteve voltada para servir àqueles em dificuldades, sejam eles quais forem (José Francisco Bonates Corrêa Júnior, tenente-coronel da Polícia Militar. Bacharel em Direito, comandante do batalhão Tu­pinambarana/AM).

Esse trabalho uniu a todos e nos convidou a pôr em prática toda uma base espiritual que ainda tínhamos. Foi um momento extremamente delicado o que passamos (Denison Lima Bentes, médico anestesiologista na cidade de Parintins e na capital do Estado pelo Grupo Coopeneste).

Os relatos apontaram para uma concordância sobre a real função da igreja. Complementando o entendimento, o enfermeiro Clerton Rodrigues Florêncio, Secretário de Saúde de Parintins, destacou ter sido  “[…]interessante a ação pautada na ideia de que a igreja não é parede, nem arquitetura”. Uma questão em específico acerca da contribuição da Igreja com o projeto “Todos Contra o Coronavírus” foi assim abordada.

Nós estávamos com o nosso município fechado [fala em alusão ao impedimento de viagens de barco por decreto estadual e Parintins é um arquipélago, com acesso apenas fluvial]. Não tínhamos transporte e nem EPIs. Estava difícil pra todo o mundo. A gente viu aí a situação mundial da falta do EPI. Na pandemia, esse uso foi de extrema importância pra gente se proteger, pro paciente se proteger. E a igreja ajudou a confeccionar e fazer doações importantes pra segurança inclusive nossa, profissionais da saúde, e também pra segurança dos pacientes (Thiago Fernandes Carvalho, Enfermeiro de emergências e enfermeiro Ponto Focal do Combate do Distrito Especial Indígena de Parintins).

Foi muito importante essa questão de se colocarem à disposição pra ajudar, pra contribuir financeiramente. Correr atrás de apoio financeiro pra comprar materiais pra que nós pudéssemos começar a produzir e tal. Mas fora a questão material, o apoio particularmente à minha pessoa foi muito grande. Foi difícil pra todo mundo. Foi difícil pra gente, sabe, que estava saindo todo dia de casa. Foi difícil a gente conseguir manter os funcionários. Todo dia eram questionamentos, eram medos. Todo mundo tava enfrentando esse medo. (Fram Canto, empresário e proprietário da gráfica e editora João XXIII, local que esteve produzindo EPIs para profissionais que trabalharam na linha de frente ao combate do novo coronavírus. Inventor da Cápsula de Hood e ProtectMax-Odonto).

A iniciativa foi o que contribuiu para que pudéssemos ter voz e mostrar a cada profissional de saúde que tinha um grupo de pessoas lutando pela vida deles, pra protegê-los. No início, não tínhamos norte, não sabíamos de onde viria, porque todo processo de compra da Secretaria de Saúde era feito por licitação. Sabíamos que não poderíamos esperar (Joseane Lima, Enfermeira. Diretora-Geral do Hospital Jofre Cohen).

A iniciativa de distribuição gratuita de máscaras de proteção no front e à comunidade em geral demonstrou a efetiva participação no combate à covid-19 (Waldivino Amorim, comandante da 3ª Companhia de Bombeiros de Parintins).

As falas confluem, nos parece, para percepções similares e recorrentes, principalmente diante do fornecimento de insumos às equipes de saúde de Parintins.

O que podemos aprender com a pandemia?

Temos visto e ouvido muitos relatos de que a vida e o outro ganharam um destaque especial. A busca por coisas e até mesmo posições sociais teve menos relevância, pelo que notamos. A solidariedade rompeu a barreira do individualismo e projetou a todos para um campo progressista e de plena consciência sobre o outro.

Eu, enquanto profissional de saúde, nunca imaginei viver o que estou vivi. Essa pandemia veio pra mostrar que todo mundo é igual, que todos os países podem sofrer do mesmo problema e que a ajuda, a simples ajuda de alguém confeccionar uma máscara e dar para uma outra pessoa, é importante. Fui fazer uma visita na aldeia pra orientar sobre o isolamento e aí eles falaram: “enfermeiro, a gente vai fazer o seguinte: como aquela família não pode sair pra pescar, nós vamos se revezar aqui e sair pra pescar por eles, porque senão eles não vão ter o que comer”. Eu vi coisas que não aconteciam mais, não só nas aldeias, mas também na nossa realidade. A saúde estava se tornando mecânica. Se salvava, ah beleza! Se morria, ah morreu! Ia morrer mesmo! E hoje, uma vida que é salva por nós, é comemorada. Eles cantam e agradecem por ter livrado aquela pessoa. E uma vida que é perdida, eles choram (Thiago Fernandes Carvalho, Enfermeiro de emergências e enfermeiro Ponto Focal do Combate do Dsei).

As narrativas suscitam o quanto pessoas foram afetadas pela pandemia, principalmente aquelas que trabalham na área da saúde. A necessidade do cuidado e do isolamento redirecionou o coletivo exatamente a essa dimensão da vida. O trato comum e a importância de ajudar o outro aparecem nos dados observados em campo. A celebração da vida versus o lamento da morte esteve posta. Foi uma questão colocada no cotidiano de diversos profissionais, em particular os da saúde, como destacamos, mas também entre os indígenas, segundo percebemos no relato do enfermeiro da Sesai, Thiago Fernandes.

Se lamentavelmente precisávamos de uma pandemia para redefinir as relações humanas, “essa pandemia veio pra mostrar que somos iguais, porque ela não escolhe se é rico ou se é pobre […] Tudo o que parecia importante antes, como um cabelo escovado, uma unha pintada, uma roupa nova, não teve mais importância. A importância era a nossa vida e a vida dos outros”, disse Joseane Lima, enfermeira e diretora-geral do Hospital Jofre Cohen.

Assim sendo, notamos que a valorização da vida, do cuidado com o outro e do compartilhamento de afetos tomaram a dianteira nos depoimentos. Dor e medo provocados pela covid-19 parecem ter despertado a humanidade para ações efetivas de humanidade. Foram memórias inestimáveis de um período difícil. Sobre isso, Portelli (1997, p. 4) diz que “a memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados”[1]. Ou seja, lembrar é reviver e perceber o vivido. Assim, embora nos mantenhamos dispostos no corpo social do qual fazemos parte, em nosso caso a Igreja Batista, e reiteradamente reivindiquemos e legitimemos esse nosso pertencimento, experiências também ocorrem de maneira profunda e individual.

Considerações finais

A crise provocada pelo novo coronavírus em alguma medida foi como um reset, capaz de promover mudanças, como afirma Pete Lunn, chefe da unidade de pesquisa comportamental do Trinity College de Dublin/IRL. “Uma crise como essa pode mudar valores”, aponta Lunn. Ademais, enquanto a história se desdobrou no presente, a igreja e seus fiéis, como sujeitos históricos, atuaram direta e indiretamente nas transformações da sociedade.

Por fim, em meio a essa tempestade o que esperamos que se continuem sejam as ações de solidariedade e afetividade. Porque “[…] ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que eu entregue o meu próprio corpo, se não tiver amor, nada serei” (1 Coríntios 13.3).

Elisângela Lessa

Graduada em Psicologia pela Universidade Gama Filho/RJ. Mestranda em Ciências da Educação pela Corporación de Humanidades y Ciências Sociales de Chile. Psicóloga Clínica

Patrícia Silva

Professora da Rede Pública (Seduc/AM). Doutoranda em História. [email protected]

Phelipe Reis

Jornalista pela Universidade Federal do Amazonas


[1] PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algu­mas reflexões sobre a ética em História Oral. Proj. História, São Paulo, (15), abr, 1997.