A primeira publicação do projeto As Margens do Estado na Pandemia: experiências periféricas de (in)segurança humana no Brasil, com o mesmo título, foi feita no início de 2021 na Revista Sertanias, em acesso aberto (leia o texto completo aqui). O artigo consistiu na apresentação do projeto e na discussão dos resultados preliminares da primeira fase da pesquisa. Estes foram obtidos a partir de um mapeamento inicial das experiências periféricas brasileiras face à pandemia de Covid-19, com foco nas dimensões do conceito de segurança humana. Através da parceria com o Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo, foram realizadas 80 entrevistas com membros e dirigentes de organizações e movimentos de base formais e informais de todo o país, representativas de 10% da rede da Fundação, de âmbito nacional abrangente. Para além disso, o artigo contou também com uma análise do retrato da mídia internacional à pandemia de Covid-19 nas periferias do Brasil, feito no âmbito do apoio do Center for Human Rights and Humanitarian Studies (CHRHS), da Universidade de Brown, nos Estados Unidos.

O artigo parte de uma contextualização da pesquisa, no qual é pintado o retrato nacional e internacional da pandemia na altura da idealização do projeto. A incerteza associada à falta de previsibilidade acerca dos desenvolvimentos da pandemia é parte central desta narrativa, que, qual memória viva, discute como o panorama foi se alterando à medida que o projeto ganhava vida. Contudo, o contexto principal abordado nesta parte é a permanente invisibilização das experiências e reações das comunidades periféricas por parte dos registros oficiais. Esta é a problemática central do projeto, que visa construir um repositório abrangente de informações e narrativas das comunidades periféricas brasileiras a partir dos testemunhos e entrevistas com lideranças de movimentos, projetos e organizações locais distribuídos por todo o território nacional. 

Conforme discutido no artigo, a importância de se observar de forma pormenorizada o impacto da pandemia nas populações periféricas brasileiras relaciona-se com o estado do desenvolvimento humano no Brasil, fortemente marcado pelas desigualdades sociais gritantes, bem como com a perpetuação de diversas formas de violência, inclusive as violências estrutural e simbólica. As perspectivas epistemológicas e conceituais que informam a pesquisa são apresentadas na seção de detalhamento do projeto, na qual é feito um breve estado da arte acerca do conceito de segurança humana e suas dimensões. Partindo de uma abordagem crítica, que considera a centralidade da segurança humana em oposição à segurança do Estado, o artigo explica como que o impacto da pandemia em determinadas franjas da população excede as manifestações da doença e do seu contágio, estando intimamente relacionado com a fragilidade estrutural pré-existente em determinada zona. Esta identificação dá relevância e atualidade à pesquisa, que busca, através desse olhar crítico sobre dimensões frequentemente invisibilizadas do debate político, trazer à tona as diferentes vozes e vivências de comunidades que estão frequentemente colocadas às margens do Estado.

Os resultados parciais do projeto apontam para um agravamento profundo das desigualdades sociais, vulnerabilidade económica e violência estrutural nas periferias brasileiras, contribuindo para uma maior insegurança humana nessas comunidades. Para além da situação pré-existente de precariedade vivida nessas zonas, a falta de resposta governamental direcionada para as especificidades dessas populações e das suas condições de vida é uma das causas identificadas para esta crise social e económica cujos efeitos apenas se avizinham neste momento. Quase metade das organizações entrevistadas apontam a resposta governamental como existente, porém insuficiente. Contudo, a pesquisa também identificou uma tendência crescente de resposta resiliente por parte das comunidades e suas lideranças. Embora o impacto da pandemia no trabalho das organizações entrevistadas foi representado como maioritariamente negativo, quase todas adaptaram suas atividades, agenda política e plataformas de interação de forma a garantir a sustentabilidade das suas ações e/ou alteraram o seu escopo de atuação de forma a responder às novas demandas das suas comunidades decorrentes dos efeitos da pandemia. Mais de um terço das organizações entrevistadas mencionaram que a pandemia levou a uma precarização de atendimentos públicos e aprofundamento das assimetrias sociais. Estas também apontaram as contradições da imposição de medidas sanitárias que não encontram ressonância nas condições de vida das populações periféricas, o aumento do número de sem-abrigos na ordem dos 50% e a crescente vulnerabilidade alimentar dos membros das suas comunidades, referindo, inclusive, que mesmo funcionários de algumas dessas organizações estavam a passar fome no rescaldo da crise económica provocada pela pandemia. 

Em termos de reações comunitárias à pandemia, a pesquisa identificou que essas organizações assumiram papéis assistencialistas essenciais para colmatar esta situação, tendo passado a arrecadar e distribuir cestas básicas e produtos de higiene, organizado ações de comunicação junto às populações para fornecer melhores condições de informação acerca da pandemia, criado grupos de acompanhamento e monitoramento das necessidades da população local, entre outros. Enquanto a mídia internacional não deixou de reportar as especificidades das populações periféricas e as suas dificuldades em lidar com o quadro pandémico e com o seu impacto social, económico e laboral, os registros jornalísticos estiveram focados, sobretudo, nas comunidades indígenas amazônicas, invisibilizando as experiências de outras comunidades periféricas urbanas. 

As conclusões desta primeira publicação situam a relevância deste projeto e dos seus sub-produtos previstos: um primeiro mapeamento documental, de políticas, registros de mídia e experiências locais mostrou que os dados oficiais têm sido insuficientes para retratar a situação de comunidades periféricas brasileiras, o que impacta diretamente as políticas desenvolvidas e implementadas para garantir a segurança humana dos indivíduos que vivem nas margens do Estado. É esta lacuna que esta pesquisa pretende preencher, com a expectativa de contribuir para o desenvolvimento de políticas focalizadas e para a visibilização das vivências dessas comunidades e das suas lutas individuais pela sobrevivência.