Testemunho: Angela Juscelino
Meu nome é Angela, mais conhecida como Pitita, tenho 44 anos e moro em uma vila na favela Aglomerado Morro das Pedras desde que nasci. O Morro das Pedras está localizado na região Oeste de BH, com mais de 30 mil moradores dentre as sete vilas. Em janeiro de 2020 durante as chuvas fortes que enfrentamos, numa noite de sexta-feira, mais uma vez fomos surpreendidos com deslizamento de terras , barrancos e barracos Como de costume no morro várias lideranças sociais ,moradores e amigos começam a se contactar para abrigar e ajudar na busca de possíveis vítimas. Infelizmente na mesma área em 2003, perdemos 9 crianças da mesma família soterradas durantes chuvas semelhantes a de janeiro de 2022 . Frente a situação, na noite chuvosa entre lama, carros soterrados fomos levando quem a gente encontrava pela frente para uma creche desativada e também para o espaço da Associação de Cultura História em construção. Passamos um mês arrecadando doações entre os próprios moradores, outras pessoas nas adjacências, instituições, comércio local e pequenos empreendedores. Todos os dias e noites revezarvamos para não deixar os dois pontos de apoio (É Tudo Nosso e História em construção) fechado sem entregar aos nossos o que precisavam.
A Prefeitura de Belo Horizonte, juntamente com a Companhia de Urbanismo ( URBEL), iniciou cadastros dos moradores que perderam suas casas ou já avaliada pela defesa civil que havia risco de desabar . Estas famílias foram levadas para pensões no centro de BH, porém, sem infraestrutura, logística (cinco famílias, num único quarto), a maioria, resolveram retornar para o Morro mesmo sabendo que ainda tinha muito risco, a chuva não parava. Muitos ficaram em casa de parentes e outros na creche desativada vivendo das doações de alimentação, materiais de higiene, limpeza, roupas, calçados, roupas de cama e banho e alguns colchões que íamos conseguindo . Antes de “respirar um pouco”, com a diminuição das chuvas nos deparamos com a Corona Vírus, assim se dizia no começo e não foi diferente de outras quebradas. O poder público declarou Lockdown, pois iniciava uma grande guerra de sobrevivência para nós. Os equipamentos públicos foram fechados, não existia nenhum canal de comunicação e ficamos a mercê de tudo.
Como trabalho a noite no serviço da saúde mental para crianças e adolescentes em BH, saia de casa dia sim, dia não, com todos os protocolos de proteção, mas não podia contar com o transporte público que foi reduzido na época mais que 80% das frotas e nem com matérias e equipamentos de proteção e prevenção ( álcool, máscara , capote e etc). Imaginem dentro da favela como estávamos? Mulheres arrimo de famílias que perderam seus empregos e não tinham o que comer e dar aos filhos, idosos com pouca informação que não entendia que precisavam ficar dentro de casa e jovens que tbm desafiaram suas saúde e vidas para ficar nos becos e vielas fazendo seus corres com intuito de ajudar os seus pais ou conversando / socializando entre eles. Os homens na sua maioria trabalhadores da construção civil ou Garis , tinham que sair para trabalhar querendo ou não. Não tiveram escolhas. A situação foi ficando cada dia pior e as pessoas com a necessidade de comer, saiam de casa , permaneciam nas rua, desacreditadas dos riscos do vírus e vendo aquela situação comecei a ligar para os amigos ( líderes sociais , colegas de trabalho, e ativista do morro) muito incomodada com a nossa situação, para pensarmos em estratégias urgentemente e garantir que os nossos tivessem informações coerentes e convissente sobre o real perigo e pelo menos álcool , máscaras, água sanitária, sabão, e comida.
A primeira estratégia foi gravar vídeo de nós mesmos, pedindo para que todos permanecessem em suas casas, pois o vírus cada dia matava pessoa. A segunda estratégia foi iniciar uma campanha para aquisição de kits (água sanitária, álcool que na época chegou a custar 20 reais, sabonete e detergente) para entregar a todos que precisavam. Começamos uma vaquinha entre a gente mesmo e conseguimos comprar 300 kits inicialmente. Daí não paramos de arrecadar. Contamos com o apoio de mulheres da nossa comunidade mesmo, que voluntariamente começaram a fazer máscara. A campanha se chamava: Vidas negras importam. Confeccionamos e distribuímos mais de 6 mil máscaras durante a pandemia. O medo, a sensação de insegurança bateu várias vezes, pois até meados de junho a prefeitura ainda não havia apresentado um plano de ação para atender e apoiar milhares de moradores que estavam sem trabalho, sem comida e sem assistência. Lembro que a PMMG rodava dentro do morro com a sirene ligada ameaçando moradores que abriram seus pequenos comércios na tentativa de conseguir grana para comer. Quando a prefeitura elaborou o plano de ação, faltava infraestrutura, equipamentos públicos aberto, profissionais para informar e direcionar os moradores. Tudo funcionando na base de celular.
Aqui o prefeito na época o Alexandre Kalil forneceu cestas básicas e kits de higiene e limpeza, porém, os moradores tinham que acessar um link no site da PBH com seu nome e CPF para saber se seu núcleo familiar tinha direito ao voucher. Mas onde consultar esse serviço?? Os CRAS fechados, lanhouses fechadas. O pior , era necessário imprimir o código e buscar a cestas em supermercado (EPA e BH) , que na maioria das vezes, são fora do entorno do Morro. “Tipo ganhou, mas não levou”. Para resolver essa situação, abrimos os telecentro do É Tudo Nosso e as famílias iam lá fazer a consulta do código e anotar em papéis rascunhos, pois não tínhamos insumos suficientes para impressão. Outras ongs também abriram suas casas e faziam a mesma ação. O tempo todo colocavamos em risco a nossa saúde para não perder mais dos nossos. Pois já haviam pessoas na comunidade contaminadas e muitas foram ao óbito. Sabíamos da quantidade de casos no território através dos agentes comunitários de saúde que também estavam na linha de frente para ajudar a convencer as pessoas sobre o risco eminente da covid 19.
Uma coisa positiva que o prefeito fez além de criar esse auxílio (cesta de alimentos e kit limpeza), foi manter o comércio e a cidade fechada . Muitos empresários, pastores, e políticos acusavam o de irresponsável, ‘pois em outros estados não era desse jeito ‘. Por mais de um ano, BH continuava com comércio, equipamentos públicos, exceto de saúde fechados sem data para abertura. Com isso o impacto na quebrada era muito grande, crianças fora das escolas , pais e mães sem trabalhar e a falta do que comer. O que acarretou muita gente nas ruas . Infelizmente a maioria das mulheres trabalhavam de doméstica ou no serviço gerais em prédios públicos e privados. Isso tudo serviu de motivação e necessidade de nós ONGs nos unirmos e buscar recursos para garantir o mínimo do mínimo para muitas famílias da nossa favela. No Morro, fizemos vaquinhas também para colocar faixas, contratar carro de som alertando a todos sobre os riscos de morte e que deviam ficar em casa.
A imprensa só apontava as mortes e o caos no Brasil. Os dados e necessidades dos moradores de favela e as informações sobre auxílios emergências chegavam na ponta pelos próprios moradores e as ongs. Muita gente teve adoecimento mental, transtorno psicológicos por perdas de familiares, abandono do poder público e o próprio isolamento social. Até hoje temos moradores adoecidos ou com resquícios da covid 19. Para tratar as pautas de políticas públicas emergências com o poder público, usamos o canal de comunicação através dos CRAS que são os únicos equipamentos públicos dentro do morro. Temos reuniões de comissão local da rede , que elaboram as demandas e encaminham para as regionais. No entanto estamos caminhando a passos curtos, os desafios são muitos, por exemplo saneamento básico, transporte público dentro da favela, e os próprios atendimento dos CRAS, dos centros de saúde, política de moradia digna, diminuição nas taxas dos serviços públicos e garantir esses direitos. Muito podería ser feito para evitar as dificuldades enfrentadas na época, a começar pelo então presidente do Brasil que deixou a nação sem vacinas, levando milhares de pessoas ao óbito. Foi o genocídio da população brasileira.